Nem sempre as palavras que me transpiram dos lábios querem realmente dizer aquilo que parece que querem. Às vezes porque me perdi no tique vaidoso de encriptar significados a ver se mais alguém os entenda. Outras vezes porque o digo com sarcasmo, humor ou ponta de nihilismo.
Outras vezes o problema nem está em mim que creio que sempre saberei a mais das vezes colocar alguma literalidade nas coisas.
Não.
O problema está em vós!
Recordo a Joana que achava que uma manhã submersa de um episódio negro que escrevi era uma sílaba tónica num banho de imersão.
Ou a Vera que depois de me ler umas páginas ao acaso achava que a coisa era pornográfica.
Eis a coisa...
A morena senta-se à beira da cama, junto à mesa-de-cabeceira. Com os joelhos nus que sobram da saia curta unidos e as mãos que neles repousam. Num compasso olha o chão. Depois ergue os olhos grandes ao homem que junto à janela, de costas viradas para si, abre com vagar os botões da camisa azul. Olha-o ela com uma sensação angustiante e claustrofóbica de inevitável, assim como a olhamos nós com ternura e profunda tristeza do que se adivinha. Filipa é linda. E não precisaria de ter as pestanas reviradas de rimel nem os lábios envernizados de vermelho, nem as maçãs do rosto coradas de falso, como hoje. Tem um rosto moreníssimo, onde lavram pinceladas de castanho de sardas sobre um nariz minúsculo e arrebitado. Os canudos negros emolduram-lhe o rosto e caem-lhe sobre os ombros, nus do top “cai-cai” vermelho. Tira o fio de prata que trás sobre o peito e derrama-o sobre o tampo da mesa. Depois tira o top e o soutien de renda igualmente tinta. As roupas caiem no chão. Filipa treme. O homem vira-se finalmente e deixa que os olhos caiam em faísca ao peito despido. Fala sem esquivar os olhos do deleite das mamas, desinteressados os seus dos olhos da morena. “És de facto um pitéuzinho. Mas olha lá, que idade tens?”; “Dezoito”- Filipa baixa de novo o olhar ao tapete felpudo cor-de tijolo.- O homem afaga o bigode- “Terás mesmo?”- a morena olha-o de baixo para cima e acena que sim. É um indíviduo encorpado. Relembra-lhe o pai, mas mais alto. Com aquela barriga rosada em que parece que o peito se apoia, a surgir sob a camisa aberta. Acha-lhe a pele enrugada, e pensa que parece que tem, sob essa, carne que foi batida. Não é por aí além gordo mas parece que a massa muscular se lhe entibeceu em puxadas flácidas que lhe pendem na pele. E sua. Tem o cabelo ralo oleoso do suor que escorre pelo pescoço e molha a camisa. O homem com as mão desabotoa o cinto castanho em que o couro se entrecorta em escamas. Os dedos grandes libertam o primeiro botão do tecido cinzento das calças de fato mal vincadas.- “Tira lá isso, que te quero montar.”- Filipa estremece interiormente. Não sabe se o homem terá dado conta. Provavelmente não se interessaria ainda que assim fosse. A sensação de contagem decrescente para a dor é um ritual de angústia. Há espinhos que se nos cravam sem que tenhamos dessa sensação aguda pré-aviso. Mas muito pior é sabermos exactamente para quando a dor tem agenda marcada. Contarmos os minutos, os segundos e os instantes indivisíveis do tempo que antecedam a nossa provação, imóveis, indefesos. O cérebro corre rotinas desesperadas de intelectualização de uma fuga mas no fundo sabemos que a mesma inexiste. Trata-se apenas de fazermos o melhor que pudermos por nós mesmos. Domar o cavalo selvagem que nos galopa no peito e deixar que a nossa alma se evada do corpo se certo é que o corpo não se evadirá da provação. O duelo mano a mano do ser humano com o seu medo mais concretizado, o paradigma do pensamento perfeito para a caminhada do condenado. De resto, melhor ou pior, suportar o inevitável. E o inevitável de Filipa é aquele homem grande de meia-idade que se perfila perante ela nu, para além da camisa azul aberta com a mão que masturba e os dentes amarelos que sorriem. A rapariga conforma-se, ou tenta conformar-se. Agora não há caminho de regresso. A bifurcação no trilho em que ainda poderia ter desisitido e esquecido ficou no momento em que o homem pagou as Caipirinhas no Skinframe e se levantaram ambos na direcção das escadas ascendentes. Agora não. Agora o tempo que mentes a ti de que ainda falta são alguns segundos. Não, nem isso. O tempo acabou-se com aquele primeiro calafrio de quando te caiu o soutien do peito. Agora apenas falta deixar acontecer. Pensa nisso melancólica, enquanto se desenvencilha das cuecas vermelhas. Preferia não saber que o homem atirou a camisa sob o sofá e dá um passo final na sua direcção.
Com um movimento súbito de mãos grandes, as mãos afundam-se no cabelo e agarram a rapariga pelo crânio. Depois puxa-a e empurra o pénis erecto em colisão com os lábios. Primeiro cerram-se os maxilares e a cabeça quer esquivar-se. Negação desesperada, que aquelas mãos a imobilizam vigorosa. Não resistas Filipa, deixa-te ir. Em breve o asco daquele cheiro azedo e do sabor que vais sentir se chamará banalidade. Quando uma fonte se deixa exaurir, não correm mais lágrimas. É por isso o sexo do homem lhe entra pela boca de lábios de menina, em movimentos ritmados. O homem fecha os olhos e respira fundo. Filipa domina o vómito e provavelmente já não pensa em nada. Está só ali, sem prazer nem dor. Apenas aquela sensação vaga de repulsa que os minutos de que vai perdendo a conta diluem. Fecha os olhos, o abstracto do que não vê reconforta-a. Pensa que não está ali aquele homem que fede a suor, com aquele pénis curto e gordo que se lhe roça na língua. Quer pensar que beija a boca carnuda de Miguel e que é a língua doce do namorado que já não tem que dança com a sua. Se cerrar os olhos, muito, muito fundo, talvez isso se materialize. Mas a cada gemido do homem as paredes da alienação frágil se desmoronam e Filipa entrevê desfocado aquele pénis, aquela barriga e aquele escroto enrugado - “Chupa, puta, vá mais fundo.”. Mais vale sonhar com o nada. Entre o nada de Filipa e a Filipa que fela o homem da barriga rosada, diluir-se uma na outra, não é assim tão improvável. Por isso, cativa na cadência a que obrigam aquelas mãos de homem, Filipa aprende a voar. Em breve terá dinheiro para fugir daquela casa velha de paredes descascadas e bolorentas. Tudo se resolverá. Ajudar a irmã e o pai a pagar tudo e quem sabe voltar a ter uma vida normal. Isso um dia. Não sabe bem quando, se Deus ajudar, talvez uns meses. Um ano, não sabe. Mas amanhã irá compensar-se com um prazer simples. Poder pagar de novo um bilhete de cinema e comer um gelado sem que não mingue o que jantar. Fechar-se na sala escura e esquecer-se do mundo cá fora, em que a partir de hoje é prostituta. Enquanto a sua vida é um pesadelo, sonhará com vidas de celulóide melhores que esta, em que os homens cheirem a canela. E um dia o pesadelo acabará. Ninguém precisa de saber. É apenas um desvio no rumo dos seus sonhos. Um dia voltará a estudar. Fazer Química e entrar para Medicina. E ter sonhos, sem vergonha de se sentar com os amigos no café. Gostar de um rapaz lindo que lhe chame Pipa e não puta e que tenha um beijar a saber a açúcar. Sim, Filipa há-de esquecer o sabor azedo daquele pénis na sua boca.
Cambalhota que não se espera. Uma mão empurra-a deitada sobre a cama em que se sentava enquanto a outra a faz virar sobre si. Sente todo aquele peso abater-se sobre ela. Ver o creme do espaldar da cama ou o negro dos olhos cerrados? Tanto faz. Sente a pele das nádegas a esticar-se, contrárias ao seu instinto de pânico que lhe traz todos os músculos contraídos. Depois sente a dor que a penetra de um impulso só. O corpo suado sobre o seu. A mão que lhe puxa um seio até à dor. Tenta respirar fundo. É apenas sexo. Este estranho como Miguel, o seu corpo aceitará ambos. Já ali tão perto está o escuro da sala de cinema. Só que agora num malabarismo das suas imagens mentais se varre o cinema e Miguel e os sorrisos de ontem e de amanhã. Crê-se fora de si a ver aquele velho gordo a usá-la como um pedaço de carne e a murmurar-lhe que a sua cona é bem riginha. Aquele hálito a tabaco e a cachaça e os fluídos daquele homem que se entranham em si. Soluça. Adivinha-se que chore.- “Anda lá, vou-te comer a peida.” – a voz sussurra-lhe ao ouvido. Filipa toma-se pânico. “Não!”- Foi tudo muito rápido. Sentiu a vagina aliviar-se e depois uma dor violenta que a rasgava. Até ali doía-lhe sobretudo a alma. Mas agora é o seu corpo que se desfaz. Grita. Um grito nado morto de uma mão que lhe amordaça a boca, empurrada que é a sua cabeça contra a almofada, ao ponto de quase sufocar- “Está calada caralho! Ainda vão a pensar que te estou a dar uma trepa!”- Outro braço toma-a pela cintura e puxa-lhe as nádegas de encontro ao corpo do homem. Chora. De humilhação. Sobretudo de dor. Choro que a almofada abafa assim como se deixa ensopar. Aqueles minutos pareceram horas. Até que sente correr a ejaculação dentro de si e o corpo aliviar-se. Depois caiu morta como um despojo sem valor nem préstimo. Sem coragem de tirar a cabeça do jugo da almofada. Já sente o som de roupa que veste o corpo do outro. “Foda-se, que és bem riginha. Ouve lá pitéu, andas na vida há pouco tempo...?”- conta as notas- “Para a semana quero essa peidinha de novo. A fruta come-se enquanto está fresca. Vá que eu pago bem.” – e a carteira pinga uma nota de 100 Euros para lá do contrato. Filipa só soluça. É um choro abafado que faz chiar o peito que tem que conter dentro a tempestade que não se consegue libertar. O homem bate a porta sem cerimónia.
Amazing Grace, how sweet the sound,
That saved a wretch like me....
I once was lost but now am found,
Was blind, but now, I see.
T'was Grace that taught...
my heart to fear.
And Grace, my fears relieved.
How precious did that Grace appear...
the hour I first believed.
Through many dangers, toils and snares...
we have already come.
T'was Grace that brought us safe thus far...
and Grace will lead us home.
The Lord has promised good to me...
His word my hope secures.
He will my shield and portion be...
as long as life endures.
When we've been here ten thousand years...
bright shining as the sun.
We've no less days to sing God's praise...
then when we've first begun.
"Amazing Grace, how sweet the sound,
That saved a wretch like me....
I once was lost but now am found,
Was blind, but now, I see.
Sara desperta sobressaltada com o som dessa porta que se batera no seu sonho. Ao seu lado, na cama pequena que serve as duas irmãs, a metade esquerda está vazia. Não sabe bem porquê, mas o coração oprime-se-lhe.