Todas as estórias têm um início. Esta também tem, apesar de ainda não ter um fim...
No outro dia quis ir à rua, ia buscar algo ao carro. O Hamlet insistia em meter-se no elevador e como eu até estava de bom humor às tantas pensei, "Que Diabo Hamlet, hoje faço-te a vontade, vamos passear à rua." Hamlet portanto ao ombro, em pose de papagaio e ala, que aí vamos. Ao sair a porta do prédio reparo num cão que nos observava à distância de alguns metros. Um cão girissimo com a cabeça quase simetricamente dividida num hemisfério negro e outro branco. à cautela segurei melhor o gato, não fosse o diabo tecê-las, embora aquele cachorro de olhar esgazeado me parecesse inofensivo.
Voltei para casa.
Nos dias seguintes, cada vez que saísse a porta, cruzaria o cão, que me viria cumprimentar, aliás como a toda a vizinhança. A conclusão óbvia era a de que fosse perdido ou abandonado, já que tiveram inicialmente um aspecto cuidado, que se gorava de dia para dia. Não pensei muito nisso. Nem sei bem porquê. O mundo está cheio de pequenas misérias e os cães de rua são só mais uma. Aceitamos, tornando-nos um pouco mais insensíveis e esquecemos ao virar a esquina.
Até aquele dia. Quinta-feira. Saí de casa e lá estava o bicho para me mendigar uma festa à saída da porta e para me acompanhar até ao carro. Tive tanta pena. Saí para mais um dia. Mas nesse dia cruzei algumas cenas inusitadas, ou então foram banais e era eu que estava mais disperto. Reparei no velho cão pertença de todos e de ninguém que vi ocasionalmente pachorrento na estação de comboio. E o cão guia que levava diligente a cega no metro. Ao longo do dia, ocasionalmente, lembrou-se-me o cão da minha praceta. Foi vindo e indo. E não estava de todo a pensar nele quando à noite cheguei de carro. Algo se me atravessou à frente do carro e travei brusco. Assomei à janela. Era o bicho. Saí, cumprimentou-me. A mim e a todos os que passavam e o iam afagando. Encorajado, tentava seguir cada um para lá da porta de mais um prédio, sem que nunca o deixassem. De novidade tinha um arranhão no nariz, má sorte rosnada de outro cão qualquer. E a mim começava-se-me a partir o coração. Não é meu hábito já o disse, e com vergonha, querer para mim estas cruzadas. Mas pela minha saúde que estava tristíssimo. Subi a casa e fui à janela. Lá continuava ele, de porta em porta, de afago em afago, à procura de algo mais. Que fazer? Que poderia eu fazer? A sonhar com um tiro de sorte lá deixei topic no messenger em busca de ajuda. Entretanto cozia arroz onde misturei alguma da ração dos meus gatos. No fim lá fui deixar algo que salvasse o cão vadio por mais umas horas. Desci, procurei, e por muito que tentasse, não o encontrei. Mas encontrei um prato com ração que outra pessoa lhe deixara igualmente. Juntei a minha contribuição e voltei para casa.
Era tempo de pensar em soluções. A Joana ajudaria no que fosse preciso. A Margarida também. Talvez ir alimentando o bicho, pagar um veterinário, comprar uma casota onde se pudesse abrigar. Mas não, não podiam ficar com o cão. Eu também não. Até que falei com a Daniela e fiquei tão, mas tão contente. Talvez, apenas talvez, que a Daniela é humana e a generosidade humana não é tão ilimitada como a de um cão - e por isso, confesso, temo ainda que a Dani possa hesitar- mas dizia, a Dani comoveu-se com a sorte do bicho e considerou ficar com ele. Combinámos que eu tentaria apanhá-lo Sábado de manhã e ela viria vê-lo. Mas entretanto o pobre cão pedia um nome. Discutimos alguns minutos e não demorámos a encontrar uma resposta óbvia. Seria o Zen! Um cão da Dani teria necessariamente que ter esse nome, concluí.
Entretanto era Quinta-feira de madrugada, e esperava-me uma viagem de dois dias para a Alemanha em trabalho. Fui e, ocasionalmente, na azáfama, lembrei-me do Zen e perguntei-me da sua sorte. Voltaria a encontrar aquele focinho meigo?
Hoje cheguei a casa já tarde, para lá da meia noite. Tem chuviscado. E está frio. No canto do Zen alguém deixou mais comida, água e uma manta velha. Senti-me contente e grato. Mas que é do Zen? Olhei em redor. Nada. No fim desisti e segui para casa. E à porta do meu prédio, lá estava ele, a tremer de frio, triste, enrolado sobre si mesmo. Não sei se fiz bem. Mas sinto que não poderia fazer outra coisa. Fiz-lhe festas, e trouxe-o comigo. Deixei-o a dormir na arrecadação, em cima de um velho tapete e um alguidar cheio de água.
Amanhã o futuro pertence à Dani.
O Zen pode ser um bicho feliz, agora que até nome já voltou a ter.
Ou eu posso ter que fazer algo que me custará imenso.
Se houver um Deus que goste dos homens e dos cães, Ele que nos ajude a ambos.